JORNAL DO COMMERCIO RJ - 01/07/03
REFORMA TRIBUTÁRIA: DE SILVÉRIOS A SILVEIRINHAS
A questão de como arrecadar os recursos para o setor público sempre teve papel de destaque nas sociedades, mas a sua visibilidade política só aumenta quando se enfrenta uma crise fiscal. Neste momento em que setores econômicos e sociais se posicionam contra o pacote do presidente e dos governadores para aumentar a carga tributária é importante lançar uma luz sobre o passado.
Vejamos o caso do declínio do império português, que coincidiu com o ciclo do ouro em Minas Gerais. Ao recolher vinte por cento da produção do ouro (os quintos), a metrópole provocava descontentamento em toda a colônia. As grandes distâncias fizeram com que a tarefa de cobrar os tributos fosse concedida a agentes privados, chamados de contratadores.
Estes deviam pagar uma quantia prefixada para o tesouro, ficando com a parte restante. Ao não cumprir as metas, assumiam uma dívida com a Coroa. A necessidade cada vez maior de recursos, os desvios, a má administração da atividade e os compromissos com a Inglaterra implicavam em quantias cada vez maiores, que acabaram provocando um acúmulo dessas dívidas.
Quando uma cota de 100 arrobas anuais sobre a extração não era completada, executava-se a derrama. Neste processo, todos os residentes das cidades mineiras eram compelidos a completar o montante, com a entrega de ouro, pedras preciosas, metais e outros bens. Da mesma forma como ocorre hoje, a ineficiência da máquina arrecadadora recaía sobre a população em geral.
O processo de espoliação culminou com a marcação da última derrama, que deveria acontecer em 1789, mas foi suspensa devido ao movimento que comemoramos com cada vez menor destaque, a Conjuração Mineira. Os grandes contratadores da região também estavam dispostos a tudo para escapar da falência. Entre os maiores devedores encontrava-se um cidadão português - Joaquim Silvério dos Reis, que trocou o segredo dos planos dos rebeldes pelo perdão de sua dívida. A derrama nunca mais foi aplicada, mas a tributação da metrópole continuou pesada, até a chegada da corte ao Brasil em 1808.
Mais de 200 anos depois, encontramo-nos frente a uma crise fiscal de proporções semelhantes. A falta de regras fixas de tributação atinge a todos os contribuintes, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas. Hoje, a sociedade sucumbe ao peso de mais de 34% do PIB (pagamos agora os terços ao invés dos quintos) e continua a não ter a contrapartida de tamanha extração de recursos.
Estamos discutindo a reforma do sistema tributário, mas todas as autoridades políticas acabam admitindo que não é oportuno diminuir a carga atual, por conta do equilíbrio das contas públicas. Deveríamos estar falando de uma "reforma no modo de tributar", com estes ou com novos impostos. O caso do "propinoduto", que atinge a fiscalização do ICMS do RJ e da Receita Federal, é o exemplo que revela uma estrutura anacrônica e permeada por interesses.
A criação de novos tributos e o aumento dos antigos vem sendo desfuncional para o conjunto da sociedade mas, por outro lado, observamos que este sistema serve aos propósitos de grande parte dos agentes políticos e empresariais - deputados que se beneficiam em suas campanhas, governos que controlam doadores de recursos e manietam os opositores, maus profissionais do fisco que se aproveitam da impunidade e, principalmente, alguns agentes econômicos privados que preferem auferir seus lucros com a sonegação dos tributos ao invés da eficiência empresarial.
O desvio dos US$ 34 milhões, se comprovado pela justiça, é apenas uma ponta do grande 'iceberg' que representa a evasão de tributos em nosso país. A saída menos dolorosa para a crise fiscal é o controle da tributação. Neste campo não temos tradição e o exemplo mais cabal é a falta de atenção com o lado da receita no texto da Lei de Responsabilidade Fiscal - nela encontramos apenas 4 artigos sobre os procedimentos de arrecadação, para um total de 75 artigos.
Algumas idéias simples podem ser implementadas de imediato. Estas devem partir desde a programação fiscal, com o uso de técnicas impessoais e aleatórias, até a cobrança de forma integrada com o judiciário, de forma a recuperar os milhões de reais que apodrecem nos porões das dívidas ativas federal, estaduais e municipais.
Depois de mais de 200 anos deveríamos saber que não adianta promover uma nova Devassa, travestida em CPI, para identificar algozes, traidores ou mártires, nem punir acusados com o esquartejamento político e o degredo profissional.
Se o que desejamos é resolver a crise fiscal, precisamos mobilizar a sociedade para que esta se convença de que a reforma tributária passa primordialmente pelo choque de transparência na atividade de tributar. É a mudança deste quadro que permitirá eliminar o ambiente propício para a sonegação e a corrupção.Esquecer esta lição vai nos fazer caminhar na rota de uma carga tributária que em breve chegará aos 50% de nosso produto interno bruto.
Pedro G. Diniz Filho
Fiscal de Rendas