JORNAL DO COMMERCIO RJ - 27/04/02
A DEFESA DOS (BONS) CONTRIBUINTES
"Não lançaremos taxas ou tributos sem o consentimento do conselho geral do reino, a não ser para resgate da nossa pessoa, para armar cavaleiro nosso filho mais velho e para celebrar, mas uma única vez, o casamento da nossa filha mais velha; e esses tributos não excederão limites razoáveis. "
Este compromisso foi firmado há quase 800 anos pelo Rei João Sem Terra da Inglaterra, pressionado pelos nobres ingleses e pela igreja. É um dos principais pontos da Carta Magna de 1215 (o primeiro documento histórico a reconhecer os direitos civis perante o absolutismo).
Vale a pena recordar estes princípios no momento em que se encontra em discussão no Congresso o chamado Código de Defesa do Contribuinte. Trata-se de importante passo no processo de democratização de nosso país, na medida em que consolida diversos dispositivos legais de defesa contra a sanha arrecadatória do Estado. Se hoje não temos uma tirania fiscal, em virtude do aperfeiçoamento do sistema tributário brasileiro ao longo deste século, ainda não podemos nos orgulhar pois possuímos uma carga tributária que se iguala à dos países mais desenvolvidos do mundo, enquanto convivemos com uma estrutura de serviços públicos que nos equipara a países com economias muito mais rudimentares.
Neste quadro é preciso entender porque existem tantas resistências à sua aprovação, provenientes principalmente dos representantes do fisco e de parte dos nossos congressistas. A razão deste movimento de resistência não é a oposição ao conjunto do projeto e sim a um significativo número de imperfeições existentes no mesmo. Entranhados no projeto de Lei em tramitação encontram-se dispositivos que não são do interesse dos contribuintes, entendidos aqui como as empresas e as pessoas que contribuem regularmente para o tesouro público, e não como os 'contribuintes' que não recolhem suas obrigações, por meio de formas legais (elisão) ou ilegais (sonegação).
Nenhum brasileiro pode ser contra a maioria das medidas do projeto. Quando uma lei procura proteger a sociedade dos exageros cometidos pelo Estado deve ser tenazmente defendida. Medidas como a vedação das publicações de leis nos estertores dos exercícios fiscais (normalmente nas últimas horas do dia 31 de dezembro), o fim da obrigatoriedade de efetuar depósitos ou fianças em caso de litígios administrativos, a necessidade de dar ampla divulgação aos valores do peso e da distribuição da carga tributária e ainda a obrigação de atender a prazos para decisões administrativas e consultas, devem ser recebidas com grande satisfação por toda a sociedade.
Mas infelizmente persistem no projeto em tramitação alguns dispositivos que vêm atender apenas aos interesses de contribuintes afastados da situação de regularidade. O procedimento de impedir a desconsideração jurídica das sociedades pelo fisco vai ampliar a liberdade dos empresários que se escondem com a utilização dos 'laranjas' (prejudicando inclusive o combate a diversos tipos de contravenções). No caso dos litígios entre a fazenda e os contribuintes propõe-se a uma ampliação da relação de prova, colocando sempre o contribuinte como detentor de boa fé, e atribuindo ao fisco a iniciativa da prova em todas as situações (no caso da Lei de Direitos do Contribuinte norte-americana, esta presunção ocorre apenas para os casos que envolvam declarações de terceiros sobre a parte litigante).
O fim de todas as restrições à capacidade de transacionar com o setor público, de receber quaisquer benefícios e de se aproveitar de linhas de crédito oficial imporá sérios riscos ao equilíbrio do mercado, pois alguns 'contribuintes' vão competir de forma desleal com os demais, que procuram cumprir suas obrigações fiscais. Se por um lado trata-se de evitar injustiças e abusos do poder público, iniciativa que devemos apoiar, por outro esquece-se que é preciso incluir ressalvas para proteger o interesse comum de devedores contumazes.
Outros pontos que vêm merecendo críticas severas são os que impõem vedações e limites ao trabalho da fiscalização: uso de força policial somente com determinação da justiça; impossibilidade de efetuar cruzamento de dados de tributos de competência distinta (IPTU com IR, ICMS com CPMF etc.), o que permitirá aumento de elisão com a criação de contabilidades fiscais paralelas; e a fixação de prazos reduzidos para as ações do fisco que podem comprometer a correta verificação das informações dos grandes conglomerados e a solução de questões mais complexas apresentadas pelos contribuintes (o aumento dos prazos para 12 meses, como dispõe a Lei Espanhola, seria uma boa alternativa). O esforço da Comissão de Constituição e Justiça foi insuficiente para colocar estas vedações ao poder de fiscalização num patamar de equilíbrio entre a ameaça aos direitos do empresariado e dos cidadãos e a liberalidade excessiva com os maus contribuintes.
Podemos dizer que, expurgando-se o radicalismo destas medidas, que podem gerar um efeito contrário ao aumentar as facilidades para os maus pagadores, entraremos num ambiente equilibrado e harmonioso entre o Estado, o fisco e a sociedade. Já a perda das prerrogativas públicas trará como efeito os males citados, com repercussões negativas, entre as quais o aumento da carga tributária individual sobre a maioria das empresas e dos cidadãos.
Os códigos que inspiraram o nosso projeto (Espanha e EUA) têm muitas de suas regras reproduzidas no nosso CDC, mas a leitura atenta dos mesmos demonstra que neles houve a preocupação de estabelecer contrabalanços e exceções para salvaguardar e proteger o interesse público da ação dos maus contribuintes. No caso brasileiro, parece ter havido uma contaminação pelo ideário de defesa do consumidor, confundindo os princípios de direito privado com os princípios de direito público, fato que mais se agrava quando observamos a grande participação dos tributos indiretos na estrutura tributária. Os contribuintes de direito neste caso são apenas repassadores de recursos monetários retirados de todas as camadas da população.
É portanto dever da sociedade e do parlamento extirpar as imperfeições que se misturam com as melhores intenções, à semelhança do joio, que infesta o campo de trigo. É uma oportunidade ímpar que possuímos para colher os resultados de um sistema tributário que respeite o contribuinte, condição necessária para que nosso empresariado e nossa população possa trabalhar sem amarras, em prol do desenvolvimento da nação.
Pedro G. Diniz Filho
Fiscal de Rendas Estadual e Membro do Conselho Superior de Fiscalização Tributária do Estado do Rio de Janeiro