JORNAL DO COMMERCIO RJ - Página de Opinião - 15/09/01
LEI KANDIR - CINCO ANOS DE ACERTOS E IMPASSES
Pedro Diniz
Fiscal de Rendas e membro do Conselho Superior de Fiscalização Tributária do Estado do Rio de Janeiro
Nesta conjuntura em que a palavra de ordem do governo é "exportar para viver " e a sistemática de cálculo das taxas de crescimento ou retração da economia está sendo questionada, a chamada 'Lei Kandir', que disciplina o funcionamento do ICMS, completará cinco anos no próximo dia 17 de setembro. A nova Lei foi aprovada numa estratégia relâmpago, que quebrou as resistências dos Estados, oferecendo-lhes um 'seguro-receita', que garantia repasses automáticos em caso de queda da arrecadação. O objetivo da Lei não foi regulamentar o ICMS, mas sim uma tentativa de minorar os efeitos negativos da política de estabilização econômica provocados pelas âncoras cambial (valorização do real) e monetária (elevação da taxa de juro) que afetavam respectivamente os resultados da balança comercial e o volume dos investimentos produtivos de nossa economia.
De acordo com as estimativas de seu idealizador, ficaria assegurado um crescimento adicional de cerca de 1,5% do PIB a cada ano seguinte à sua implantação, criando uma dinâmica virtuosa de mais investimento, mais crescimento, mais renda e mais emprego. Os instrumentos que propiciariam este resultado seriam a desoneração das exportações de produtos não-manufaturados e a permissão para as empresas passarem a abater do imposto devido os valores de ICMS embutidos nas aquisições de máquinas, equipamentos e material de consumo.
Passados cinco anos, a conjuntura econômica está longe da realidade antevista. No campo de intervenção sobre as exportações, observamos que as vendas externas de produtos primários se comportaram com a mesma dinâmica das exportações globais, que só aumentaram após o ajustamento da relação real x dólar - funcionou a desvalorização cambial, e não a 'desvalorização fiscal'. No campo dos investimentos também não observamos uma resultante positiva, pois a formação bruta de capital fixo vem declinando anualmente (depois de um pequeno crescimento em 1997), pressionada pelo nível elevado das taxas de juros. Num primeiro balanço, parece que os objetivos explícitos da Lei não foram atingidos, quando analisamos o resultado das contas com o exterior e a taxa de novos investimentos.
Entretanto, para uma análise coerente da Lei Kandir, precisamos fazer algumas considerações sobre os problemas na sua implantação e sobre a dificuldade de avaliar os seus efeitos numa conjuntura adversa.
Até 1996 predominou a filosofia que incentivava o maior processamento das 'commodities' exportáveis (a incidência do imposto dispensava apenas os produtos manufaturados). A ampliação do benefício para os demais produtos provocou uma crise em alguns setores de beneficiamento de produtos primários, com destaque para os complexos de esmagamento de soja e de beneficiamento de couros. Adicionalmente, a desoneração não acarretou exportações adicionais nos ramos em que o mercado é regido por cotas, barreiras de preço, condições de superoferta etc. Nestes casos, os únicos beneficiados foram os setores envolvidos na exportação, pois com as mesmas quantidades exportadas obtiveram maiores lucros.
Mas foi na sistemática de ressarcimento aos Estados que surgiu a maior distorção. O 'seguro-receita' permitiu implantar uma mudança radical em tempo recorde (entre a apresentação e a aprovação passaram-se menos de cinco meses), ao assegurar que as receitas não seriam diminuídas no futuro, mas sua concepção fez com que o ressarcimento não tivesse nenhuma relação com o valor das perdas decorrentes da nova Lei, mas sim com o nível da receita global de cada um dos Estados. Este mecanismo acabou transformando a tão criticada guerra fiscal numa verdadeira "guerrilha fiscal", empreendida por governantes e administradores que vislumbraram a possibilidade de abrir mão de receita tributária própria, concedendo generosos incentivos fiscais, amparando-se na contrapartida dos repasses da Lei Kandir.
Este último problema foi reduzido com a implantação do novo mecanismo de ressarcimento, definido pela Lei Complementar 102/00 - um fundo orçamentário com cotas fixas para os Estados, que contará com um volume de recursos semelhante ao que vinha sendo despendido com o "seguro-receita". Se por um lado acaba com o equívoco de estimular a renúncia fiscal, por outro o fundo não será suficiente nem para ressarcir os valores das perdas dos Estados com um volume de exportações de produtos não industrializados estimado em mais de US$ 25 bilhões, em 2001. Por esta razão os Estados vem procurando minorar os impactos negativos, negociando com o Congresso e a União o retardo dos prazos de implantação dos novos mecanismos de creditamento de bens de uso e consumo e de energia elétrica que, ao contrário das perdas com a exportação de primários, afetam indistintamente a todas as unidades federadas.
Apesar desses problemas, acreditamos que as novas características do ICMS devem ser mantidas em nosso ordenamento tributário, por uma série de razões, das quais destacamos as duas principais. Inicialmente, é necessário considerar os impactos do ambiente econômico desfavorável que impediu que as exportações e o investimento fossem alavancados. Deve-se ressaltar ainda que a nova sistemática do ICMS acabou contribuindo para que o desequilíbrio das contas externas não tenha sido maior, e para que os valores das inversões em ativo fixo não ficassem ainda mais reduzidos. Em segundo lugar, como forma de tributação mais avançada (a ótica do consumo admite abatimento irrestrito do imposto embutido nos insumos), a Lei Kandir introduz na matriz do ICMS as regras que vigoram internacionalmente no campo dos impostos sobre o valor adicionado, além de propiciar um ajustamento ao tratamento encontrado nos demais países que integram o MERCOSUL (além da América Latina, o IVA é utilizado em mais de 75 países: no Canadá, nas economias socialistas em transformação para a economia de mercado, na Europa e na Ásia - inclusive China e Japão).
Nossa tarefa no momento é promover um grande debate para quantificar as perdas decorrentes das diversas desonerações, fazendo uma previsão realista e flexível que permita fazer uma correta reparação financeira das mesmas aos Estados e Municípios através de um cronograma de ressarcimentos decrescentes.
Uma proposta inicial, com relação às perdas com a exportação, seria a implantação do mecanismo proposto na Carta dos Governadores de Oposição, de maio de 1999. Naquela oportunidade foi sugerida a criação de certificados de exportação, emitidos pelos Estados, para resgate junto ao Governo Federal. Estes títulos propiciaram também uma maior possibilidade de controle de irregularidades tais como exportações registradas e não efetuadas.
A definição de um cronograma realista que permita que os Estados exportadores possam se beneficiar com a geração de renda futura decorrente do aumento do nível da atividade econômica, deixando portanto de ficar dependentes dos repasses compensatórios é a principal meta para que possamos consolidar a forma de apuração do ICMS pelo critério da agregação financeira. Neste processo, a capacidade de arrecadação de todos os Estados deve ser reforçada, através de medidas que, sem descuidar da justiça tributária, sejam capazes de aumentar a eficiência e a eficácia das ações das Fazendas Estaduais.